Meritocracia Moral
Em uma sociedade que valoriza tanto o mérito, é difícil ser julgado por não ter nenhum. — Michael Sandel
Meritocracia é um sistema em que o sucesso e o status de vida dependem dos talentos, habilidades e esforços individuais. De acordo com esse conceito, as pessoas crescem e alcançam resultados com base em seus próprios méritos.
Embora amplamente aceito, o conceito de meritocracia só poderia tornar-se verdade quando suas características fundamentais: “competição imparcial” e “igualdade de oportunidades”, de fato existissem. Em uma sociedade justa, todos podem alcançar a plenitude por meio do próprio empenho e escolhas, independente do ponto de partida de cada um, as dificuldades e facilidades enfrentadas seriam regidas pela equidade, equilibrando as chances de vitória para todos os que se dedique a alcançá-la. O que não parece ser uma realidade em parte alguma.
Esses conceitos vêm sendo amplamente discutidos por grandes estudiosos como o professor Michael Sandel da Universidade de Harvard , que em seu livro “A Tirania do Mérito”, nos convida a refletir sobre a necessidade de se rever as crenças a respeito da justiça social e o economista Robert Frank, que defende a meritocracia como uma meia verdade, porque na realidade trabalhar duro e ser talentoso não são o suficiente: é preciso também ter sorte.
A maioria dos estudos sobre o assunto usa como modelo de sucesso riqueza, fama ou poder, quando na verdade a proposta de felicidade é mais ampla, considerando outros aspectos da vida humana, como a qualidade de nossos relacionamentos, conforme apontou a Universidade de Harvard ao longo de 76 anos de pesquisa. Podemos também ir mais longe e resgatar Platão para nos lembrar que felicidade é “praticar o bem baseado na ética”. Em ambos os casos, o sucesso e a plenitude são vistos como uma jornada e não como um ponto de chegada.
Por essa razão, tenho pensado se as conquistas morais e espirituais não estariam igualmente submetidas exclusivamente à aderência aos valores que são atributos das grandes virtudes humanas. Somos virtuosos por mérito próprio?
Uma pessoa que tem uma vida digna é moralmente vitoriosa, pode se considerar bem sucedida na perspectiva espiritual, uma vez que a prática das virtudes é prioritária na conquista de uma vida humana plena.
A virtude, repete-se desde Aristóteles, é uma disposição adquirida de fazer o bem.
Então, me pergunto: o que faz uma pessoa ser virtuosa? Seus valores morais são resultantes da educação, são frutos da própria vontade ou consequência do seu desenvolvimento espiritual?
A História mostrou à humanidade que bondade e espiritualização não são hereditários e nem se aprende a ser bom nas melhores escolas. Se assim o fosse, ser virtuoso seria determinado pela “sorte” do nascimento ou da hierarquia social, o que não corresponde à realidade quando estudamos as biografias de grandes vultos.
Ser uma pessoa boa, se considerar virtuoso e se reconhecer como alguém que vive de forma exemplar, pode parecer um resultado que depende apenas do esforço próprio para seguir valores e princípios éticos, ou do desenvolvimento espiritual individual, que é visto como um tipo de talento, mas na verdade é uma construção humana sistêmica e profunda.
Como ocorre então o desenvolvimento das virtudes? Como o ser humano pode se tornar uma criatura espiritualmente melhor?
Essas perguntas são feitas por filósofos e religiosos há séculos. Aristóteles disse que é fazendo que aprendemos. “Por meio de ações justas que aprendemos a ser justos; por meio de ações moderadas nos tornamos moderados”. Para ele, ser virtuoso é consequência da vontade e da ação virtuosa, depende daquilo que queremos ser para o mundo.
Ser bom é admirável. Hoje em dia, até as grandes corporações compreenderam a importância de desempenhar um papel positivo no mundo para garantir a própria existência porque tem reduzido, a cada dia, o espaço no mercado para marcas que não tem um propósito. O novo consumidor exige compromisso das empresas com valores nobres.
Celebridades têm se engajado em causas sociais de visibilidade. Algumas delas, acostumadas com as técnicas das mídias digitais, parecem procurar também um filtro para a alma, com a necessidade de aparentar um coração melhor.
Esses movimentos significam passos importantes para a construção de um mundo melhor. Uma vez que o homem deseja parecer por fora como de fato deveria ser a sua alma. É um movimento ainda pequeno, mas que prepara grandes mudanças.
Assim também como o sucesso material, a moral também é impactada pelo ponto de largada. Toda pessoa que conta com a oportunidade de experimentar sua vivência em lares onde haja equilíbrio, atendimento às necessidades básicas, segurança e boas conexões humanas adquirem melhor performance na construção do ser uma pessoa melhor.
Por essa razão, não importa se os valores foram aprendidos no lar, nos livros, na experiência religiosa ou na convivência com pessoas boas, o mérito nunca é apenas individual ou fruto do talento espiritual e moral. Somos a nossa melhor versão diante do repertório de experiências oferecidas à alma.
Essa compreensão é importante para que o ser humano não esqueça o conjunto de coisas que contribuiu para que se tornasse vitorioso e virtuoso, bem como para que não olhe com desprezo ou julgamento para quem não alcançou a mesma vitória, tornando-se arrogante e esquecendo a humildade.
Quando olhamos para alguém julgando suas ações a partir da perspectiva da nossa história de vida, somos míopes. Se cada um partiu de um ponto específico e teve uma trajetória diferente, como podemos julgar?
A meritocracia é falsa para a espiritualidade quando medida pela régua do julgamento humano, assim como o é quando declaramos que todos têm a mesma oportunidade de ser rico ou poderoso.
Verdade que pessoas que não prestam, aos nossos olhos, podem ter feito escolhas equivocadas e até mesmo não terem se esforçado em se tornar melhores. Contudo, é possível que tenham experimentado provações difíceis na vida, às quais, se fossem submetidas ao julgador, talvez esse último tivesse obtido resultados muito piores.
A pergunta que devemos fazer antes do julgamento é muito simples:
Quem eu seria se tivesse vivido as mesmas experiências de vida de alguém que julgo sem virtudes?
Obviamente, não se trata de acatar a anarquia ou a maldade como comportamentos aceitáveis. Para isso existem as leis sociais.
Compreender a jornada de cada um como única tem o poder de libertar a mente humana do barulho mental provocado pelo julgamento e promove a empatia.
Julgar-se melhor, mais espiritualizado e virtuoso é uma auto-denúncia de alma empobrecida.
As raízes da diferença entre as pessoas, muitas vezes está na diferença social.
Por essa razão, todo ser humano virtuoso, que acredita no seu papel individual na construção de um mundo melhor, deveria se engajar em alguma causa que combata a pobreza e a falta de oportunidade de educação para muitos.
A virtude individual não tem relevância se for incapaz de proporcionar movimentos coletivos.
É bem aqui, neste ponto que a espiritualidade se apresenta em sua maior possibilidade para o mundo corporativo, convidando empresas a protagonizar mudanças. Assim como muitas já vem fazendo no combate à crise criada pela pandemia da covid-19 e na necessária promoção da inclusão. Essas são possibilidades de transformação do olhar para com a sociedade, sem usar as lentes turvas da competitividade sem propósito.
A força coletiva, liderada pelas corporações, só é possível quando executivos dispõem de competências socioemocionais e são capazes de interpretar que indivíduos que estão “do lado de fora”, em situação de desvantagem, precisam de apoio, sem julgamentos ou interpretações políticas ou sociais.
É tempo de uma mudança moral coletiva, esquecendo a arrogância meritocrata que separou as pessoas e devolvendo, em forma de gratidão, as vitórias e virtudes individuais ao mundo que as proporcionou.
É tempo do protagonismo das habilidades humanas.
A humildade talvez seja a virtude mais necessária no momento, para que a humanidade se tornasse vitoriosa em sua mais importante missão: ser de novo humana.